Pessoas me perguntam de onde diabos tirei um tema de pesquisa para o mestrado que parece, a princípio, tão mirabolante. Não é. Tem muito a ver com tudo de que venho tratando até agora, na vida acadêmica e profissional. O percurso não é muito difícil de refazer, e as pontas do círculo não estão tão afastadas quanto parecem.
Como diria Goulart de Andrade, “vem comigo!”.
Meu tema-de-vida-inteira sempre foi a relação entre estética e ideologia. De como construções imagéticas e verbais podem provocar a percepção de forma a ativar ou inculcar valores pertinentes a determinada construção ideológica. E de como isso pode estar presente em qualquer objeto produzido pelo homem, seja imagem ou texto, design ou cinema, arquitetura ou literatura. De como os regimes totalitários perceberam isso e criaram doutrinas oficiais para a estética: o jdanovismo, o realismo socialista, a estética nazista.
OK, até aí nada.
Quando comecei a trabalhar, defini o jornalismo internacional como foco profissional: a cobertura sobre fatos ocorridos no exterior, o noticiário estrangeiro, o trabalho de correspontes e redatores de Inter. Um de meus primeiros estágios foi em uma agência de notícias, e lá comecei a perceber como uma coisa linkava com a outra. Como os textos dos correspondentes eram carregados de julgamentos de valor, de marcas discursivas, de traços ideológicos que não se faziam presentes por idéias declaradas, mas sim por uma escolha de palavra (“presidente” ou “ditador”), por uma conjunção adversativa ali (“cubano, mas democrata”), por uma justaposição de fatos acolá (“Putin foi eleito e a guerra da Tchetchênia recomeçou”). A parcialidade no texto também era uma construção ideológica, assim como um cartaz ou um filme de propaganda.
Começou a fazer sentido, né?
Depois, em redação de jornal, vi como essas configurações estético-ideológicas eram reproduzidas, replicadas, e disseminadas como verdade. Pesquisando, encontrei que essas mesmas questões já eram observadas e debatidas há 30, 40 anos, e que as soluções para corrigi-las foram sintetizadas num projeto esquecido pela minha geração de jornalistas: a Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação, ou NOMIC.
Os pensadores que defendiam essa mudança na forma como a comunicação internacional acontecia (e até hoje acontece) sempre atacavam as agências de notícias como fonte do problema, em geral argumentando que os jornais, rádios e TVs “relaxam” no material enviado por elas (antes por telex, hoje pela internet), que é tendencioso, concentrado e limitado aos assuntos do Primeiro Mundo, ignorando ou estigmatizando os países pobres (o chamado fluxo de informação desigual entre os hemisférios Norte e Sul). Bem, parte é verdade: as agências fazem isso, mesmo porque a maior parte de seus clientes está no mundo rico, e quem paga mais ganha mais atenção. Mas as agências, em si, não são o vilão da história. É o sistema de produção e circulação de informações pelo mundo que favorece as agências, que são empresas que fazem isso em economia de escala, padronizada, em linha de montagem, como uma fabriquinha da Ford.
Pesquisando mais ainda, encontrei uma iniciativa criada na época da NOMIC (anos 1970) para juntar agências de notícias de países pobres e criar um sistema internacional de informações alternativo que abastecesse as editorias de Inter com material sobre o Terceiro Mundo. Comunicação de pobre para pobre, de Sul para Sul – o que hoje se chama de eixo Sul-Sul. Essa iniciativa foi proposta pelo Movimento dos Países Não-Alinhados, um bloco que na Guerra Fria ficava “neutro” entre URSS e EUA e reunia o que hoje se chama “países em desenvolvimento”. E quem estava à frente desse bloco? A minha querida Iugoslávia.
Ahá! Fez o link.
A agência de notícias do Tito, a Telegrafska Agencija Nove Jugoslavije (Tanjug) foi quem liderou esse sistema. Ela coordenou a montagem de um pool de cobertura, permanente, no qual as agências de países pobres trocavam informações e cooperavam entre si para cortar custos e agilizar a cobetura. Toda a concepção e a operação do pool (chamado NANAP, da sigla em inglês para Non-Aligned News Agencies Pool) foi baseada no princípio da autogestão, uma premissa básica do socialismo iugoslavo (chamado de “titoísmo”), que era diferente do modelo soviético ou chinês. Segundo esse princípio, toda produção deve ser controlada pelos trabalhadores diretamente associados, não somente por gerentes ou dirigentes. Isso valia para toda e qualquer atividade produtiva, inclusive a comunicação. E, assim, o NANAP nasceu como uma cooperação em que cada agência determinava quanto podia colaborar, quanto extraía dali, como e quando podia participar, sem nenhum ônus ou prejuízo, e nenhum lucro tampouco. Podia entrar e sair à hora que quisesse, assim como assumir voluntariamente o papel que desejasse. Todo o conteúdo era distribuído de forma livre e dependia de seus próprios participantes para ser reproduzido, modificado e ampliado – assimetricamente. Atuava sob a velha máxima do socialismo utópico, “de cada um de acordo com suas possibilidades, e a cada um de acordo com suas possibilidades.”
Ora, eu que sou enciclopedista e usuário wiki de primeira hora, reconheci logo algo de muito familiar nesse manifesto. Essa lógica da produção (de informação) em redes, baseada no trabalho colaborativo, dos trabalho associado e diretamente envolvido, na liberdade de associar-se e desassociar-se quando quiser e na produção coletiva como forma de gerar agilidade e diversidade é exatamente a lógica do que se chama de web 2.0, do colaborativismo, do commons, de social media e outras “novidades” da comunicação. E, no entanto, tudo bebe de uma experiência antiga permeada pelos ideais autogestionários da Iugoslávia.
Claro. Não acho que Larry Sanger e Jimmy Wales tenham lido o programa do partido comunista iugoslavo antes de criarem a Wikipedia, nem que Lawrence Lessig tenha conhecido o NANAP antes de pensar na licença Creative Commons. Mas não há como negar que parte do pulso por fazer da internet um espaço de fluxos alternativos de informação nasceu da frustração causada pela derrocada da NOMIC nos anos 1980. E talvez o fato de o congresso iCommons de 2007 ter acontecido em Dubrovnik, antiga capital da Escola da Práxis – a intelligentsia do socialismo autogestionário na Iugoslávia – não tenha sido por acaso.
E, graças a esse papel importante da Iugoslávia, o lugar escolhido pela ONU em 1980 para realizar sua conferência que aprovou o documento que pedia mudanças na comunicação internacional (o chamado Relatório MacBride) foi exatamente Belgrado.
Pronto. Fechou o círculo?
Então quer dizer que a Iugoslávia inventou o wiki 30 anos antes? Eu não seria tão exagerado. Mas também não dá para ignorar uma experiência tão inovadora numa época em que não havia internet e o máximo de infraestrutura de informação que existia era telex e satélite. Embora tenha deixado poucos resultados práticos (a desigualdade na informação internacional entre Norte e Sul continua ocorrendo), o NANAP foi pioneiro em montar um sistema adequado às realidades e idiossincrasias do Terceiro Mundo. E é aí que ele tem a ver com a gente e com nossa vida de hoje em dia.
segunda-feira, 1 dezembro 2008
Categorias: mestrado . Tags:autogestão, colaborativismo, Escola da Práxis, mestrado, NANAP, Tanjug, titoísmo, wiki . Autor: Pedro Aguiar . Comments: 1 Comentário