Na sexta-feira passada, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, em Haia, condenou a 24 anos de prisão o criminoso de guerra croata Ante Gotovina (pronuncia-se “goTÓvina“, com tônica no tó). Foi a primeira condenação do tribunal de Haia para um alto comandante do lado croata do conflito – o que já tinha acontecido com líderes bósnios, albaneses e principalmente sérvios.
Gotovina é o equivalente croata ao Ratko Mladić sérvio, em termos de grau de atrocidades por eles comandadas e de high-profile entre os criminosos de guerra do conflito de 1991-1995. Só que Mladić ainda está foragido, enquanto Gotovina foi capturado em 2005 nas Ilhas Canárias, possessão da Espanha na costa da África, em uma operação conjunta de inteligência da União Européia com apoio do então governo da Croácia. Está preso há 6 anos e, portanto, tem mais 18 a cumprir.
Ante Gotovina com o brasão croata no quepe
Mas há uma diferença básica entre as atitudes das populações balcânicas em relação a esses dois criminosos: enquanto na Sérvia – pelo menos em Belgrado e nas cidades – as pessoas se envergonham ao falar de Mladić (ao ter de reconhecer que estupros, mutilações e assassinatos coletivos foram cometidos em nome delas, ou de uma contestável “nacionalidade sérvia”), na Croácia… bem, na Croácia a maioria considera Gotovina um herói nacional.
Sim, um herói nacional. Quando estive em Zagreb, fui a uma loja de lembrancinhas ao lado da catedral principal da cidade (Marijini Uznesenje, ou Nossa Senhora da Assunção) e me deparei com algo que derrubou meu queixo: um chaveirinho com a imagem de um Gotovina sorridente, uniformizado. Sem conseguir disfarçar meu choque, olhei, mudo, para a balconista, que me perguntou (em inglês): “Você sabe quem é?“. Ainda mudo, confirmei. “He’s our national hero.”
Nunca, mas nunca que em um estabelecimento equivalente em Belgrado que se encontraria um chaveirinho de Mladić. No Kosovo, onde os sérvios estão de fato acuados e militarmente reprimidos, sim. Em zonas rurais, vilarejos onde algumas mentalidades retrógradas imperam, também. Mas aquilo era a capital do país, bem no coração turístico. Muito mal comparando, seria como se as lojinhas de souvenirs no Corcovado vendessem chaveirinhos de Filinto Müller, Sérgio Fleury ou Sebastião Curió. Ou, melhor, se perto do Portão de Brandemburgo, em Berlim, se vendessem quinquilharias com as efígies de Goering, Himmler, Goebbels e outros.
Ante Gotovina foi responsável pela Operação Tempestade (Operacija Oluja, em servo-croata), a ofensiva croata-católica contra os sérvios da República da Krajina (ou “Marca”), região habitada por sérvios mas formalmente inserida no território da Croácia (vale lembrar que as fronteiras internas iugoslavas foram desenhadas intencionalmente para não corresponder às áreas ocupadas pelas etnias). Na ação militar – com apoio tático e de treinamento dos EUA -, cerca de 700 combatentes sérvios foram mortos (contra menos de 200 croatas), 4 mil sérvios foram feitos prisioneiros (dos quais 374 foram assassinados depois de presos, em circunstâncias como fuzilamentos, esquartejamento ou queimados vivos) e 90 mil sérvios foram expulsos, tornando-se refugiados. Foi limpeza étnica.
Entre as acusações formais feitas contra Gotovina em Haia, estavam assassinato, perseguição e deportação forçada de civis e violação de leis da guerra (como pilhagens e torturas de prisioneiros), todos considerados crimes contra a humanidade. Ele alegou inocência em todos os casos. A defesa dele no tribunal contou com nomes acostumados a vitórias em grandes processos internacionais, como Greg Kehoe (o promotor no “julgamento” de Saddam Hussein) e o irano-canadense Payam Akhavan, ex-assessor da promotoria no próprio tribunal de Haia (que, por isso mesmo, deveria contar com informações privilegiadas). Mesmo assim, foi condenado. Sinal de que as provas eram contundentes.
Mas o homem Ante Gotovina é um personagem fascinante. Católico fervoroso, mercenário por vocação, mulherengo inveterado, político e bon vivant, ele é muito mais complexo que a imagem de “carniceiro dos Bálcãs” atribuída aos criminosos de guerra daquela parte do mundo. É preciso lembrar que, antes de ser croata, ele nasceu como iugoslavo – mais especificamente, numa ilha da Dalmácia, o atual litoral croata no Mar Adriático. Deixou o país ainda adolescente para ser marinheiro e depois alistou-se na Legião Estrangeira francesa. Recebeu treinamento militar, tornou-se paraquedista e parte da tropa de elite da França. Lutou na África (Congo, Djibouti e Costa do Marfim) e foi condecorado. Ao dar baixa, passou a trabalhar como guarda-costas e matador de aluguel em Paris. Fez a segurança pessoal de Jean-Marie Le Pen, o líder protofascista francês, e passou a agir em operações paramilitares contra sindicatos.
Procurado por assassinato, roubo e extorsão, saiu fugido da França e veio para… a América do Sul. Encontrou trabalho ensinando o que sabia: treinou grupos armados de direita na Argentina e na Colômbia, onde ensinou as direitistas AUC a combater as FARC com mais eficácia. Apaixonou-se e casou-se com a jornalista colombiana Ximena Dalel, com quem teve uma filha, também batizada Ximena.
Com o início da guerra civil iugoslava, em 1991, Gotovina se apressou em voltar pra terra natal, de onde tinha saído 15 anos antes. Destacou-se nos primeiros combates, na Eslavônia (nordeste da Croácia, fronteira com a Sérvia, onde ficam Vukovar e Osijek), e logo foi remanejado para o principal teatro de operações, na Krajina (pronuncia-se Craina). Foi lá que obteve suas maiores vitórias em combate e foi alçado à patente de general, às custas de atrocidades contra muçulmanos e sérvios.
Na sexta-feira, a leitura da sentença foi acompanhada pela população croata com telões na praça principal de Zagreb. A condenação foi recebida com vaias. A primeira-ministra da Croácia, Jadranka Kosor, criticou Haia e foi recepcionar no aeroporto o outro criminoso, Ivan Čermak, que foi absolvido e voltou pra casa. Já na Sérvia, a sentença contra Gotovina foi recebida com alívio, principalmente por parte dos refugiados que ele expulsou de suas terras e hoje vivem de ajuda alheia em Belgrado. Mas não houve comemoração. Isso dá uma medida dos diferentes sensos de responsabilidade que cada sociedade ex-iugoslava adotou em relação ao conflito.
Se fosse um personagem de novela brasileira, seria algo como um chefão do tráfico, comandante de milícia ou capitão do cangaço, conhecido como “matadô” – e, mesmo assim, admirado pela comunidade. Fosse um mafioso de Chicago, seria provavelmente Tony Cash. A tradução do nome – Ante é a forma servo-croata de Antônio, e num apelido ficaria Tonico ou Toninho; já Gotovina é uma palavra vulgar para dinheiro, grana, bufunfa – já daria um caráter ao mesmo tempo farsesco e temível. Seria um Toninho Bufunfa, bandido de pouco escrúpulo e alta periculosidade – que, para o bem dos Bálcãs e da paz no mundo, vai passar os próximos 18 anos atrás das grades.
terça-feira, 19 abril 2011
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