Há exatamente 90 anos, nascia a Iugoslávia, uma experiência geopolítica, econômica e sociocultural que marcou o século XX. Apesar de ter nascido e morrido em guerras marcadas por atrocidades, o país formado por Sérvia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Eslovênia, Montenegro e Macedônia foi, de 1918 a 2006, um dos maiores da Europa e um ator forte no cenário internacional. Com heroísmo e criatividade, os iugoslavos venceram os nazistas por conta própria, desafiaram as duas potências da Guerra Fria ao mesmo tempo, inovaram na forma de construção do socialismo e levaram ao Terceiro Mundo uma proposta de desenvolvimento baseada na cooperação Sul-Sul.
A Iugoslávia nasceu no dia 1o. de dezembro de 1918, quando o Reino da Sérvia e o Principado de Montenegro, ex-protetorados do Império Otomano, se uniram ao efêmero Estado dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, então recém-formado pelas províncias de maioria eslava no sul do Império Austro-Húngaro. De início, o novo país adotou o nome de Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos – uma designação étnica, não geográfica – até 1929, quando foi oficializado o termo que o batizaria: Iugoslávia, do étimo eslavo ‘iug’ (sul, meridional), ou seja, a “terra dos eslavos do Sul”.
O país viveu como uma monarquia até 1941, quando foi invadido e retalhado pelas forças do Eixo. Nazistas no norte, italianos no sul e seus vizinhos húngaros, romenos e búlgaros anexaram grandes nacos de território e implantaram estados-fantoche no restante. Particularmente entre croatas e albaneses, houve grande número de colaboracionistas, conhecidos como ustashe.
A resistência aos invasores na Segunda Guerra veio de duas facções: os tchetniks, monarquistas legitimistas identificados com o nacionalismo sérvio, e os partizans, guerrilheiros comunistas que não faziam distinção entre as etnias e recrutavam voluntários em todos os cantos do território ocupado. Os primeiros adotaram uma linha de ação na retaguarda e chegaram a ser tolerados pelos nazi-fascistas por também combaterem seus próprios compatriotas do Partido Comunista. Já os partizans se recusaram a transigir com o inimigo e praticaram uma guerrilha generalizada, de forte base popular, que acabou por minar a Wehrmacht por cansaço. Antes do Dia D, de Stalingrado ou da campanha na Itália, os iugoslavos fizeram o Eixo bater em retirada.
Com a vitória conduzida por mérito próprio, e não sob a ajuda do Exército Vermelho, os iugoslavos implantaram um regime socialista de fato revolucionário, bem distinto dos golpes palacianos que pipocaram na Cortina de Ferro. Desde cedo, eles se recusaram a ser dobrados pela doutrina stalinista que submetia as economias do Leste Europeu ao esforço de reconstrução soviético. O Marechal Tito, líder partizan que se tornou presidente, rompeu com Stalin ainda em 1948 – muito antes das denúncias do “discurso secreto” de Khruschov – e o Partido iugoslavo centrou seus ânimos na concepção e construção de uma “via nacional para o socialismo” que se contrapusesse ao modelo soviético: nascia daí o socialismo autogestionário.
Baseados principalmente nos comentários de Marx sobre a Comuna de Paris em 1871 (expostos em “A guerra civil na França”), os ideólogos do PCI – com o esloveno Edvard Kardelj e o montenegrino Milovan Djilas à frente – elaboraram os princípios do sistema que os stalinistas batizaram, pejorativamente, como “titoísmo”. Acusaram Tito de trair o socialismo, porque o PCI resgatou a idéia marxista original de que nem toda propriedade privada era capitalista: pequenos negócios, empresas familiares e sítios foram permitidos, desde que não houvesse mais-valia nem exploração. Outra máxima, a de que “a libertação dos trabalhadores seria obra dos próprios trabalhadores”, foi levada à risca no princípio da autogestão, segundo o qual toda atividade produtiva deveria ser administrada pelos próprios produtores diretos associados. Ou seja, os conselhos operários, de agricultores, de funcionários de escritórios, prestadores de serviços, diferentemente dos sovietes russos, mantinha de fato o controle das fábricas e impedia a burocratização por quadros do Partido. E o sistema era reproduzido em todos os níveis, tornando a democracia popular iugoslava um regime bem distinto de seus vizinhos no Leste.
Para começar, foram garantidas liberdades individuais, de imprensa, de criação artística e de religião. Era possível ir e vir, viajar, sair do país, ter acesso ao mundo. Num país multiétnico e multi-religioso como a Iugoslávia, os comunistas perceberam que formariam hegemonia muito mais facilmente se dialogassem com os diferentes grupos em vez de suprimi-los, como na política stalinista para as nacionalidades. Além disso, houve de fato uma revolução nos costumes e práticas sociais, inclusive com a igualdade de fato entre os gêneros (até os acampamentos da juventude eram mistos, e não separados como na URSS) e políticas de cotas para etnias minoritárias.
O socialismo autogestionário iugoslavo teve influência imensa no Terceiro Mundo. Basicamente, isto se deveu à constatação de que a premissa de que cada país deve alcançar o socialismo de acordo com suas condições históricas e recursos disponíveis (políticos, culturais e naturais) era exeqüível. No Quênia, na Tanzânia, no socialismo árabe de Nasser e do Ba’ath, até a distante Indonésia, o sistema testado nos Bálcãs foi considerado um modelo para as nações em processo de descolonização. Em geral, todas enfrentavam os mesmos problemas, como submissão econômica, precariedade de infraestrutura e instabilidade institucional, além de muitos também serem agrupamentos multiétnicos por terem tido suas fronteiras desenhadas pelos colonizadores.
Coincidentemente (ou não), a terra dos eslavos do Sul voltou-se para a metade Sul do mundo, marginalizada nas decisões políticas, nas transações econômicas e nas trocas culturais do cenário pós-guerra. Tito ajudava os países pobres enviando técnicos e equipamentos, capacitando profissionais e levando suas reivindicações às potências com as quais tinha bom trânsito. A divisão do planeta decidida em Ialta, em 1945, uma espécie de Tratado de Tordesilhas do século XX, rachava o mundo entre Leste e Oeste, esferas de influência da URSS e dos EUA (ambos do “Norte” industrializado), sem contemplar as áreas ainda dominadas pelos decadentes impérios coloniais europeus (o Sul do mundo). Estes, à medida que iam conquistando a independência, eram chamados a se alinhar a um lado ou a outro.
Como alternativa à bipolaridade foi criado o Movimento dos Não-Alinhados (o grupo de países em desenvolvimento que antecedeu o G77), do qual Tito foi um dos fundadores e expoentes A Iugoslávia, a Índia de Nehru, a Indonésia de Sukarno e o Egito de Nasser eram na época o equivalente àquilo que os BRIC são hoje – com a diferença de que representavam uma alternativa real de modelo de desenvolvimento.
Até a Perestroika de Gorbatchov, implantada em 1985 para tentar salvar a economia soviética, bebeu muito da fonte iugoslava, resgatando princípios da produção descentralizada e da antiburocratização. E a Glasnost pretendeu, tardiamente, conciliar socialismo e liberdades civis, como os iugoslavos já tinham feito desde o início.
Mas o titoísmo também teve falhas, incluindo a forte dependência do mercado externo tanto para importações quanto para vender os produtos de sua indústria. O fato de não ser alinhada nem a um bloco nem a outro permitia à Iugoslávia negociar e transitar suas mercadorias em ambos os lados antagônicos da Guerra Fria. Mas o país, pobre em recursos energéticos, sofreu duramente com a crise do petróleo de 1973. Além disso, seu relativo sucesso incomodou concorrentes próximos, como a Alemanha Ocidental: por exemplo, o Zastava, automóvel símbolo da era Tito, era um competidor barato e de boa qualidade para os carros alemães.
A morte de Tito, em 1980, só agravou o quadro. O vazio deixado por sua liderança carismática levou a disputas de poder no Partido, abrindo caminho para o velho pesadelo do marechal: os nacionalismos de base etno-religiosa. Figuras como Slobodan Milošević, na Sérvia, e Franjo Tuđman, na Croácia, reacenderam ódios e pelejas entre tchetniks e ustashe, pacificadas desde a vitória partizan. E o que parecia impossível até a véspera aconteceu: nos anos 1990, os povos da Iugoslávia se enfrentaram em guerras fratricidas, marcadas por atrocidades e violações que a Europa não via desde o fim da Segunda Guerra. A última delas foi o bombardeio a Belgrado, capital iugoslava e sérvia, por aviões da OTAN em 1999.
Mas a marca que a Iugoslávia deixou na História, principalmente para os países que lutam pelo desenvolvimento, como o Brasil, foi a de que vale o embate por vias autônomas, de que a sujeição a uma potência estrangeira ou a outra é sempre um tiro no pé, e de que a única saída para a emancipação é a cooperação entre todos que têm interesse nela – seja no âmbito local, como os conselhos comunitários, ou no âmbito global, como a ação internacional conjunta dos países pobres. A lição do país que nasceu 90 anos atrás é a de que compensa o empenho dos que investem na transformação da sociedade por esforço da própria sociedade.
segunda-feira, 1 dezembro 2008
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