Belgrado 2006 . parte V . “Uma Noite a Mais em Belgrado”

Reza forte num faia não, mizifio! Agradeço pra todos vocês que se juntaram à torcida pra eu ficar mais tempo em Belgrado, porque deu certo! Ganhei três dias a mais na cidade, quase de graça. E foi o melhor que podia ter acontecido. Se achei que tinha me apaixonado por Viena, Belgrado se revelou uma amante maravilhosa…

A manhã de quarta-feira começou triste, como a crônica de uma despedida anunciada. A má vontade em fazer as malas para ir embora e o anseio por algum atraso ou problema imprevisto no embarque eram mais fortes que meus movimentos. Um par de meias na mochila. Pára um pouquinho. Descansa um pouquinho. Uma camiseta. Pára um pouquinho. Descansa um pouquinho. Que horas são? Ah, tá.

Com menos antecedência do que o recomendável, mas ainda com tempo hábil pra pegar qualquer aviao, chegamos ao aeroporto. David fez seu check-in na Czech Airlines (ele ia de volta para Praga, de onde pega o avião pro Canadá) e eu entrei na fila da British Airways. David voltou, e lá estava eu na fila. Com bagagem, passaporte e… meu e-ticket. O famoso e-mail que as empresas, para economizar papel atualmente, enviam para que os clientes imprimam em casa e usem como embarque para todos os aeroportos do mundo. Todos, menos Belgrado.

Do you expect this to be taken as a ticket?

O ar de desdém da atendente da British ao segurar meu papelzinho desdobrado foi respondido com um humilde ‘sim’ (já não lembro em qual língua). E a tréplica veio com um sorriso sádico.

Well, not in Belgrade.

David voou e eu fiquei. O fato é que eu e minha agente de viagens não tínhamos como saber que o aeroporto de Belgrado é um dos últimos da Europa a ainda não ter adotado o sistema de referência de reservas a partir de e-tickets. Tive que ir ao escritório da companhia, no centro da cidade, para entender isso e pedir para emitirem a passagem em papel pra outro vôo (e de lá telefonar pro Brasil pra resolver o problema). E, à exceção da atendente da British, os sérvios explicam a questão com um jeito constrangido, como quem sente vergonha pelo fato de o país não operar no mesmo nível tecnológico dos vizinhos europeus. Isto me remeteu imediatamente a um sentimento coletivo que já havia percebido entre as pessoas deste país: a mágoa de não serem reconhecidos como plenos europeus pelo resto da Europa.

Este ressentimento foi particulamente acentuado com os bombardeios de 1999, quando ninguém na diplomacia se levantou em defesa da Sérvia (na época, nem a Rússia de Iéltsin) e a população se sentiu humilhada e tratada como bárbaros. E um dos primeiros argumentos dos sérvios ao comentar a agressão da OTAN é lembrar que eles foram o primeiro território europeu a ser bombardeado desde a Segunda Guerra Mundial. Ou seja: tiveram o mesmo tratamento que os nazistas. E não era esse o caso, nem de longe. A identidade européia aqui é um tema extremamente em voga. Em uma revista turística que li na sala da espera da British, um artigo assinado pela prefeita de Belgrado ressalta que a cidade fica na confluência de dois rios internacionais – o Danúbio e o Sava – a partir dos quais se pode ir e vir para boa parte do continente. Páginas adiante, fotos e texto relatavam o festival de Svibor, no qual sérvios reconstituem batalhas medievais, vestidos a caráter (lembram das pessoas que vi treinando luta de espadas no parque? pois é). O evento tem o apoio e patrocínio da Igreja Ortodoxa, porque relembra a importância dos povos eslavos na defesa do cristianismo contra os invasores turcos muçulmanos. E isso foi durante quatrocentos anos, do século XV ao XIX. Os vienenses adoram falar de como resistiram ao cerco otomano de 1683, mas os turcos só demoraram a chegar lá porque ficaram literalmente séculos embarreirados pelos guerreiros sérvios.

O único outro período da História tão popular quanto o revivalismo medieval e’ a Iugoslávia, especificamente os anos dourados sob Tito (1945-1980). O contraste com os outros paises ex-socialistas do Leste Europeu e’ impressionante: enquanto a República Tcheca ignora ou se aproveita disso para atrair turistas e a Romênia sente vergonha do Ceauşescu, a Sérvia se orgulha e sente saudade do Marechal. Incluindo os nao comunistas. Srba resume o sentimento muito bem: “Naquela época, éramos um grande país, um dos maiores da Europa. Nosso passaporte vermelho era respeitado e com ele podíamos viajar para qualquer lugar do mundo. O Terceiro Mundo tinha a Iugoslávia como exemplo e liderança. Nosso tipo de socialismo era invejado. Tivemos muito mais sorte que os russos.”

A nostalgia é refletida nos inúmeros livros lançados recentemente sobre ele, sobre o pais que deixou de existir, incluindo o recente “A Cozinha de Tito” (um livro das receitas preferidas do Marechal e outros pratos feitos com ingredientes das seis repúblicas), alem das camisetas, pôsteres, pins, medalhas e outros tipos de memorabilia. Mas, enquanto em Praga estes itens eram vendidos especificamente para turistas, aqui em Belgrado eles são consumidos pela própria população. Conta-se também o furor pós-plebiscito, que salpicou bandeiras sérvias (restauradas da época da monarquia) em todos os prédios, casas e mesas de escritorio. Para os sérvios, não é só Montenegro que é o país mais novo do mundo: eles também, finalmente, voltaram a ser simplesmente Sérvia.

Desejei ser contido por uma camisa de forca financeira: dois dias a mais em Belgrado significavam dois dias de compra de toda esta quinquilharia titoísta. Vocês sabem, sou um membro de carteirinha do Partido Consumista.

E o que não se pode deixar de comprar na Servia e’ comida. A cultura daqui tem quitutes deliciosos, a maioria `a base de carne (sinto muito pelos vegetarianos, como o David), e o mais fácil deles é a palatchinca (ou palačinka), uma massa de panqueca recheada e dobrada em cone, para ser comida com a mão. Embora um francês que conheci mais tarde tenha jurado que a iguaria sérvia não passa de um simples crepe, eu ainda não tinha visto nada parecido. De tanto observar (e comer), acho que aprendi a fazer. Faço aqui a promessa de, quando voltar, chamar os amigos pra um lanche e preparar palatchinques salgados e doces para todo mundo.

Depois de forrar o estomago, telefonei para Srba, que ficou espantado por eu ter conseguido “perder” o avião – sem que fosse culpa minha! – e garantir minha estadia adicional na cidade. Como estava desesperado para me livrar dos 49 quilos da minha tripla bagagem (27 da mala, 15 da mochila e 7 da mochilinha), acabei aceitando a sugestão de ir para um ho(s)tel mais perto, cuja maior vantagem foi ter conhecido a única brasileira com quem cruzei na Servia – uma estudante de medicina de Londrina, PR. Cedo no dia seguinte, voltaria para o albergue onde já estava – um pouco mais longe, mas muito mais aconchegante.

No meio do caminho, passei num guichê da DHL e consultei preço de remessa para o Brasil. Tarifa mínima de 100 euros por 1 kg. Um quilo. E a minha tralha pesa 49. No way.

Foi nessa noite que conheci o Zemun, a segunda área antiga de Belgrado. O interessante da capital servia é que, por estar na antiga fronteira entre Império Otomano e Áustria-Hungria, ela tem duas cidades antigas: a parte central, dominada pelos turcos durante quatro séculos, e o núcleo construído pelos austríacos para vigiar o limite. É este setor que se chama Zemun. Nas ruas, cada detalhe é incrível. Um cheiro doce exala por todo o bairro. Ate’ a tampa do bueiro e’ bonita, de um baixo-relevo em latão que brilha dourado sob a luz de mercúrio dos postes, com os dizeres “Kanalizacija – Grad Beograd“. Dominado por uma alta torre de onde se pode ver o Kalemegdan (ou seja, turcos e austríacos se patrulhavam mutuamente), o Zemun é uma vizinhança de ladeiras e construções do século XVIII cheia de bares, cafés e cantinas típicas, aqui chamados “kafanas”, com vista para o Danúbio. Esforçando-me ao máximo para evitar comparações, o lugar lembra uma mistura de Ouro Preto com Santa Tereza. Detalhe interessante é que, ate’ recentemente, todos esses estabelecimentos eram estatais, incluindo o restaurante onde tomei uma coca-cola – mas isso não é fácil de perceber. Funcionam igualzinho a qualquer outro.

Subindo numa destas kafanas, fiquei hipnotizado com a vista: o lado oposto ao que tinha visto antes, com a “outra” Belgrado antiga brilhando ao fundo, as muralhas do Kalemegdan mais uma vez douradas e uma lua cheia gigantesca no céu, do tamanho daqueles sois africanos. Voltei `a realidade e pensei que aquele e’ o lugar ideal pra fazer um pedido de casamento.

Entre as duas “old towns” cresceu a Nova Belgrado, uma área de urbanização no estilo Barra ou Brasília cuja maior atração são os blocos de apartamentos construídos por Tito. Atualmente abrigam a classe média da cidade e percebe-se que a região, como todas do tipo, já esta’ sendo alvo de especulação imobiliária. Marriots, Sheratons, Best Westerns e Intercontinentais estão subindo em locais onde antes havia sedes de empresas publicas pertencentes ao povo iugoslavo. Globalização é foda.

(Imaginem sentinelas austríacos tendo a mesma visão no século XVIII, exceto que vez por outra eram atingidos por tiros de artilharia turca. Não é à toa que aquela ilha fluvial totalmente preservada, que mencionei antes, tem o nome de Veliko Ratno Ostrvo, ou Grande Ilha da Guerra).

No caminho de volta, ao longo de uma linha de barcos-boates (splavs ou “bares flutuantes”) ancorados na beira do Danúbio e batizados com nomes hispânicos (Akapulko, Marinero e Avana sem H), Srba e eu viemos conversando sobre a relação entre o Leste Europeu e a América Latina. Comentamos que o povo de uma região não sabe praticamente nada sobre a outra. E que, no entanto, são dois lugares do mundo com realidades semelhantes, ou espelhadas: duas partes do mundo que estão tentando reconstruir suas democracias, enfrentando corrupção e pobreza, depois de passarem por ditaduras de variados níveis de crueldade – apenas se inverte o espectro ideológico de cada lado. Disse a ele que, para muitos aqui, o lado de trás da antiga Cortina de Ferro não passa de um lugar onde as pessoas falam línguas incompreensíveis, são loiras, robustas e rudes e gostam de guerrear de tempos em tempos (não preciso mencionar que não foi “nesse” Leste que fui, porque não existe). Por outro lado, meu fixer (que é analista de sistemas e um fã de Ian Brown) garantiu que a ignorância é recíproca, e que os eslavos vêem a América Latina como um lugar exótico, LONGE (reiterado varias vezes) e que não se sabe nada daí à exceção notável de Cuba. A experiência comum da vida socialista criou um interesse e solidariedade para com a ilha. Neste ponto ele começa a me perguntar se sei algo de lá, e começo a contar o que escutei de Larissa/Flor/Ricardo que estiveram em Cuba este ano, fazendo a triangulação. Globalização é foda.

Exausto, e com quatro calos no pe’, mas com o coração extasiado por uma visão do paraíso (perdido) que é Belgrado, voltei para o albergue. O dia seguinte seria ainda mais movimentado.

Belgrado 2006 . parte II . “Belgrado, a Heroína dos Bálcãs”

A melhor sensação do mundo é confirmar as expectativas de suas próprias escolhas.

Belgrado não é um destino óbvio para os brasileiros que vão conhecer a Europa, e só esse motivo já seria justificativa suficiente para eu querer vir aqui. Fui eu que escolhi Belgrado, fui eu que decidi meus passos dentro da cidade, e foi muito bom gostar de cada coisa aqui. Mas o melhor de tudo foi ter vindo e descoberto um lugar que guarda uma BOA surpresa a cada esquina.

Talvez a principal delas tenha sido Srboslav, apelidado Srba, nosso contato (guia ou “fixer”) por aqui. Cheguei até ele porque ele namora a melhor amiga da Alesja, a bielorrussinha que conheci no curso em Praga. É um sujeito de 29 anos, roqueiro, religioso (cristão ortodoxo, faz o sinal da cruz três vezes quando entra E quando sai das igrejas), fluente em inglês e alemão e, como a maior parte da geração dele, ex-soldado no exército iugoslavo durante as guerras da Bósnia (1991-1995) e do Kosovo (1999-2000). Na verdade, Srboslav não chegou a ser combatente, mas cumpriu o serviço militar obrigatório em Belgrado enquanto colegas e amigos de infância morriam no front.

Na segunda e na terça-feira, Srboslav nos levou pra ver o resto de Belgrado por onde não andamos no domingo. Infelizmente, não deu pra ver tudo. Ficaram de fora a cidade antiga (Zemun, até o século XIX ocupada pelos austríacos), os centros culturais e os bares flutuantes sobre o Sava. Também demos um azar danado com os museus: o Histórico Nacional está em reformas, o Histórico da Iugoslávia só tinha uma exposição pequena de arte contemporânea, o Etnográfico está em mudança de exposição permanente e no Mausoléu de Tito chegamos apenas 10 minutos depois de fechar. Conseguimos apenas ver o gigantesco Rolls Royce (blindado) do marechal.

Mas eis o que nós vimos: primeiro, Srba nos levou à Ada Ciganlija, uma antiga ilha fluvial transformada em península por um istmo artificial, onde os sérvios fizeram um parque que fica lotado no verão. As praias do rio costumam ficar lotadas (200 mil pessoas nos fins de semana, segundo ele, numa faixa de menos de três quilômetros) e as pessoas bebem numa espécie de calçadão com uma fileira de quiosques, como na Lagoa. Adivinhem qual é a maior novidade em drinks: guaraná. Só que aqui não é vendido como refrigerante, e sim como energético no estilo Red Bull. Não é doce, é muito azedo, mas dá pra reconhecer o gosto da nossa bebida tradicional. Vi, no meio do parque, pessoas treinando uma luta com espadas que não parecia asiática, e sim medieval.

A parte triste veio em seguida. Pela primeira vez na vida, vi destroços de guerra. Não existe como conter o choro. Não são escombros de algo que caiu de podre, ou que desabou por má conservação. São prédios que estariam em perfeito estado se não fosse por crateras gigantescas (20 a 30m de diâmetro), geralmente esféricas, causadas por bombas atiradas de aviões. Escritórios, repartições públicas, instituições estatais (civis), empresas funcionavam ali. Vêem-se as janelas com vidros inteiros ao lado de um vazio e imaginam-se as pessoas em seus locais de trabalho, até uma bomba americana cair sobre suas cabeças. A sede do exército era um único prédio ligado por uma ponte, e agora são dois: a ponte foi destruída. A torre da TV, orgulho da cidade, não existe mais. A antiga sede da polícia federal (não política!) tem dois grandes buracos redondos. O brasão da Iugoslávia, no entanto, continou intacto.

Srba nos conta como as pessoas viveram durante o bombardeio. Por 72 dias, eles não sabiam o que ia acontecer. A maioria se refugiava nos abrigos subterrâneos, e uns poucos se aventuravam nas ruas. Ninguém trabalhava, ninguém ia estudar, ninguém fazia mais nada. Não tinha futuro, amanhã, horizonte. Apenas se deixava o tempo passar, às vezes comendo. Eu sei o que é sentir isso, mas não consigo imaginar uma população inteira na mesma situação. Perguntei se houve roubos às casas vazias: nenhum. Na guerra, a solidariedade e o respeito mútuo são absolutos. As pessoas começam a ver beleza e felicidade em cada pequena coisa, numa criança sorrindo, numa mãe amamentando, num casal se abraçando. E, de repente, a sopa rala é deliciosa. Embora não deseje o sofrimento para ninguém, Srba diz que todo indivíduo deveria passar por isso uma vez na vida, para aprender a valorizar o ser humano.

Por outro lado, sérvios corajosos vestiam alvos nas roupas, nas cabeças e, provocativos, se juntavam em pequenas multidões nas praças e parques e sinalizavam para os bombardeiros: “Estamos aqui; atirem!”. Outros ocupavam as pontes sobre o Sava e o Danúbio, fazendo escudos humanos para evitar a destruição delas (há muito poucas pontes no país inteiro, e uma das mais antigas delas, a Stari Most (Ponte Velha) de Novi Sad, a OTAN reduziu a pó… gratuitamente).

Seguimos andando pela mesma rua, onde fica a maioria das embaixadas em Belgrado. A dos EUA é ultrajantemente suntuosa e com uma segurança ostensiva. Chegaram a fechar permanentemente uma rua do quarteirão. Há duas semanas, uma simulação de atentado à embaixada ianque causou caos no trânsito da rua, que é movimentada. Mais adiante, há as sedes separadas dos poderes (presidência, governo/gabinete, parlamento) da República da Sérvia e da Federação Iugoslava, uma distinção que agora se tornou inútil. Há dois meses, as instituições do governo federal foram extintas e os prédios começaram a ser esvaziados. Na prática, a cidade ganhou alguns palácios a mais para ocupar.

Passamos pelo parque em frente ao Parlamento Iugoslavo, onde os sérvios fizeram a tal “revolução de outubro” de 2000. Foi o mesmo lugar que tínhamos visto uma semana antes, em um documentário exibido no curso do TOL. As cenas do povo invadindo, depredando e ateando fogo no prédio ainda estavam frescas na nossa memória. David, com larga artéria humorística como todo canadense, não se segurou:

“Me deu uma vontade danada de invadir o parlamento. Vamos?”

Pegamos um táxi e percorremos o bairro de mansões. Nosso objetivo principal: a casa de Milosevic, de onde ele saiu preso, humilhado, para ir morrer em Haia, nas circunstâncias estranhas que conhecemos. Até Srba, que não tinha a menor simpatia por ele e é insuspeito pra falar, acredita que o presidente foi assassinado. O taxista já sabia de cor o endereço. Paramos em frente. Uma mansão até modesta, menor que a do Roberto Marinho. Uma grade opaca só revelava o telhado branco. Dei uma de enxerido e subi no muro para espiar sobre a grade. Tudo vazio e sujo, com aspecto de abandonado. Srba me puxou. Disse que eu podia ter levado um tiro. A casa “abandonada” continua muito bem guardada.

Vimos também as catedrais de São Sava e de São Marcos. A primeira está em reconstrução, e pretende ser o segundo maior templo do mundo, depois do Taj Mahal (talvez o terceiro, se incluirmos a sede da Igreja Universal em Del Castilho). A segunda é uma coloridíssima igreja ortodoxa erguida como réplica de uma catedral macedônia.

Terminamos o dia de segunda-feira na rua Skadarska, uma ladeira de paralelepípedos pontilhada de cafés que geralmente têm shows ao ar livre de jazz, tango (estilo Piazzola) ou música tradicional sérvia. Pertinho dali, encontramos o Republika, um bar temático estilo retrô e literalmente underground (é subterrâneo) que se aproveita da estética titoísta/iugoslava para relembrar o país que acabou de acabar (e toca rock, ufa!). Óbvio que adorei. E elogiei tanto que me deram o menu como souvenir.

Compras: lojinha oficial do Estrela Vermelha, o maior dos dois times de Belgrado. O outro, Partizan, não tem tantos souvenirs à venda. Mais CDs baratinhos, DVD de filmes sérvios (não encontrei o “Terra de Ninguém”, que é bósnio e satiriza os correspondentes internacionais metidos a aventureiros). Um mapa de Belgrado. Um dicionário Português-Sérvio e Sérvio-Português. E uma loja de brinquedos lotada de Playmobil.

A comida aqui não é sem-graça como em Praga ou “disfarçada” como em Bucareste. Aqui é novidade. Quitutes, guloseimas, nas confeitarias que chamam de “pekara” (parece “bakery” em inglês). Comi burek (um folheado feito com banha de porco e recheio de queijo ou frutas), um-churrasco-dentro-de-panqueca-cujo-nome-não-me-ocorre-agora, feito na rua (rostije), e piroški (uma espécie de pastel de forno eslavo). E um croissant recheado de “creme de champanhe”. Delícia. Aqui em Belgrado não falta coisa gostosa pra comer.

Hoje passeamos pelo museu de Nikola Tesla, um mega-inventor sérvio que, apesar de ter vivido radicado nos EUA entre os 1890s e 1943, ainda é orgulho nacional. Ele trabalhou com Edison, desenvolveu sistemas de transmissão de energia elétrica, inventou o controle remoto e, diz-se, desenvolveu o mecanismo de transmissão de som por ondas de rádio antes de Marconi. Aí no Brasil, no entanto, a imagem de Tesla ficou ofuscada por gente nossa como Santos Dumont e Landell de Moura, outras vítimas de esquecimento e controvérsia. Mas aqui, ele está na nota de 100 dinares, uma das mais comuns.

Belgrado 2006 . parte I . “Cruzando o Danúbio Azul”

Quando chegamos a Belgrado de trem, vindo de Bucareste, era por volta das 10h da manhã, e só tínhamos a reserva do albergue (um pouco afastado do centro, mas numa vizinhança tranqüila cheia de casas) e telefones dos meus contatos aqui. Não sabíamos mais nada a respeito da cidade. Tudo que conto a partir de agora foi o que aprendemos aqui. Vários guias e colegas tinham feito alertas sobre os táxis daqui, que – como na maioria das cidades – às vezes enganam estrangeiros, cobrando 200 vezes o valor da corrida normal. Mas na Sérvia isso tem outro motivo: muitos vêem os estrangeiros (a despeito do país de origem) responsáveis por toda a dor e crise sofridas pela nação. E, em parte, têm razão.

A ferrovia, depois de cruzar a ponte sobre o Danúbio (caramba, é realmente azul, e em qualquer lugar), faz um estratégico contorno tendo à direita o rio e à esquerda as muralhas e torres da fortaleza do Kalemegdan. A visão de paisagem turística é fascinante e lembra a imagem jobiniana dos aviões que dão a volta no Corcovado e Pão-de-Açúcar para pousar no Santos Dumont. É lindo.

Na cabine ao lado, um grupo de seis jovens sérvios cantava alguma canção patriótica voltados para a janela.

No primeiro dia, andamos a tarde toda a esmo, e tivemos a sorte de ir parar exatamente onde queríamos. Esta é a primeira cidade a que chego onde não há metrô. A maioria dos bondes (tramvai = tramway) e dos ônibus (trolej = tróleis, trolley) é bem antiga, datando dos anos 1950 ou 1960 e nunca reformada. Parte dela foi destruída em combates e bombardeios. Poucos anos atrás, no entanto, o governo do Japão doou uma frota nova de ônibus convencionais, o que melhorou um pouco a situação – os novos são amarelinhos e trazem a inscrição “Presente do povo japonês para a cidade de Belgrado”.

Saltamos na Trg Republike (Praça da República), onde ficam os principais museus e centros culturais, e andamos a rua Knez Mihailova (Príncipe Miguel), só de pedestres, onde há inúmeros cafés, livrarias, confeitarias (pekara), e lojas de roupas tanto de marcas locais quanto de grifes estrangeiras (Zaras, Lacoste, etc.). Por causa do baixo valor do dinar (a moeda sérvia), a maioria dos preços é mais baixa que no “ocidente”, mas eu comparei e achei que quase tudo está na média do Brasil. Comprei um dicionário de bolso Servo-Croata – Português (e vice-versa) por 495 dinares, ou 17 reais.

Encontrei CDs do Goran Bregović, o compositor pop/rock que faz as trilhas dos filmes do Emir Kušturica, pelo equivalente a menos de 15 reais cada. Já os CDs das bandas altie/indie que nunca chegam ao Brasil estão lá também, mas por um preço bem mais alto (de 30 a 50 reais).

E sorvetes. Gigantescas casquinhas e bolas de sorvetes dos sabores mais sofisticados, por uma ninharia, em quiosques instalados em cada esquina.

Chegando ao final da rua, entramos num parque, sem saber exatamente aonde íamos. Na aléia principal, velhinhos e veteranos de guerra vendem medalhas, broches, bótons, pins e distintivos das instituições militares e civis da Iugoslávia – igual à feirinha da Praça XV, só que direto dos ex-donos. Muitos retratos do Tito em todos os lugares. O povo daqui tem orgulho dele – quando não saudade. Não é como os tchecos, que só relembram o passado socialista pra vender souvenires, ou os romenos, que sentem vergonha do Ceauşescu. Os sérvios admiram o marechal que não vêem como ditador, mas como líder e herói de guerra, e parte deles ainda se recusa a aceitar o fim da Iugoslávia.

Andando um pouco mais, fomos vendo que estávamos indo exatamente em direção ao castelo fantástico que tínhamos visto do trem. Era o Kalemegdan – não por acaso, o primeiro ponto que vimos da cidade quando chegávamos de trem.

O Kalemegdan é uma fortaleza que foi construída pela primeira vez antes dos romanos, no século III a.C., e depois reerguida pelo imperador bizantino Justiniano em 535 d.C.. A maior parte do castelo está em ruínas, principalmente as muralhas, mas um trecho considerável parece intacto. Isso seria normal, se não fosse o fato de o Kalemegdan (cujo nome significa, em turco, “forte entre campos de batalha“) ter sido USADO, ou seja, atacado e defendido a cidade e a Sérvia das investidas seguidas de romanos, bizantinos, germânicos, turcos, austríacos, nazistas e, mais recentemente, americanos.

O parque, hoje construído em volta da fortaleza, exibe orgulhosamente tanques capturados dos alemães nas duas guerras mundiais, além de armas (baterias anti-aéreas, obuzes, jipes) doadas pelos soviéticos e usadas pelos partizans na Resistência. Crianças podem entrar nos blindados e brincar. Dentro do castelo, um museu de mineralogia exibia pedras preciosas trazidas de… Minas Gerais. Perto da torre principal (onde funciona um observatório) há uma igreja ortodoxa pequenininha com um lindo batistério. Acima da pia batismal existe uma clarabóia onde há oito imagens de santos, de cujos nomes os pais tiravam sugestões para os bebês. Deve ser essa a razão de os nomes sérvios se repetirem tanto.

A vista do alto do Kalemegdan é de tirar o fôlego. À beira do Sava, a cidade antiga de Belgrado, com prédios históricos, a maioria datando da época em que a cidade foi capital dos reinos da Sérvia (1878-1918) e da Iugoslávia (1918-1945). Depois de abolir a monarquia, Tito manteve quase tudo intacto. Entre o Sava e o Danúbio, construiu a nova Belgrado, com os típicos blocos residenciais socialistas, homogêneos e ortogonais. Mais tarde, Milošević (aprendi a pronúcia: Milôshevitch) fez erguer a imponente torre da TV estatal. E, bem no encontro das águas, uma ilha enorme permanece completamente intacta, como uma floresta no meio da cidade (ok, ok, a gente tem a floresta da Tijuca, mas aqui é diferente; é Europa, onde tudo já foi ocupado e urbanizado, e esta floresta está intacta enquanto a cidade já existe há 2,5 mil anos). Mais adiante, fica a Ada Ciganlija, a península artificial onde os belgradinos passam os dias ensolarados de verão (com direito a praia de nudismo).

Este foi o primeiro dia. No segundo dia, encontramos Srboslav, nosso “fixer” por aqui, que nos contou (E MOSTROU) cenas do ataque abominável de 1999. E, além disso, nos levou para tomar cerveja sérvia num café com jazz ao ar livre.