Reza forte num faia não, mizifio! Agradeço pra todos vocês que se juntaram à torcida pra eu ficar mais tempo em Belgrado, porque deu certo! Ganhei três dias a mais na cidade, quase de graça. E foi o melhor que podia ter acontecido. Se achei que tinha me apaixonado por Viena, Belgrado se revelou uma amante maravilhosa…
A manhã de quarta-feira começou triste, como a crônica de uma despedida anunciada. A má vontade em fazer as malas para ir embora e o anseio por algum atraso ou problema imprevisto no embarque eram mais fortes que meus movimentos. Um par de meias na mochila. Pára um pouquinho. Descansa um pouquinho. Uma camiseta. Pára um pouquinho. Descansa um pouquinho. Que horas são? Ah, tá.
Com menos antecedência do que o recomendável, mas ainda com tempo hábil pra pegar qualquer aviao, chegamos ao aeroporto. David fez seu check-in na Czech Airlines (ele ia de volta para Praga, de onde pega o avião pro Canadá) e eu entrei na fila da British Airways. David voltou, e lá estava eu na fila. Com bagagem, passaporte e… meu e-ticket. O famoso e-mail que as empresas, para economizar papel atualmente, enviam para que os clientes imprimam em casa e usem como embarque para todos os aeroportos do mundo. Todos, menos Belgrado.
“Do you expect this to be taken as a ticket?”
O ar de desdém da atendente da British ao segurar meu papelzinho desdobrado foi respondido com um humilde ‘sim’ (já não lembro em qual língua). E a tréplica veio com um sorriso sádico.
“Well, not in Belgrade.”
David voou e eu fiquei. O fato é que eu e minha agente de viagens não tínhamos como saber que o aeroporto de Belgrado é um dos últimos da Europa a ainda não ter adotado o sistema de referência de reservas a partir de e-tickets. Tive que ir ao escritório da companhia, no centro da cidade, para entender isso e pedir para emitirem a passagem em papel pra outro vôo (e de lá telefonar pro Brasil pra resolver o problema). E, à exceção da atendente da British, os sérvios explicam a questão com um jeito constrangido, como quem sente vergonha pelo fato de o país não operar no mesmo nível tecnológico dos vizinhos europeus. Isto me remeteu imediatamente a um sentimento coletivo que já havia percebido entre as pessoas deste país: a mágoa de não serem reconhecidos como plenos europeus pelo resto da Europa.
Este ressentimento foi particulamente acentuado com os bombardeios de 1999, quando ninguém na diplomacia se levantou em defesa da Sérvia (na época, nem a Rússia de Iéltsin) e a população se sentiu humilhada e tratada como bárbaros. E um dos primeiros argumentos dos sérvios ao comentar a agressão da OTAN é lembrar que eles foram o primeiro território europeu a ser bombardeado desde a Segunda Guerra Mundial. Ou seja: tiveram o mesmo tratamento que os nazistas. E não era esse o caso, nem de longe. A identidade européia aqui é um tema extremamente em voga. Em uma revista turística que li na sala da espera da British, um artigo assinado pela prefeita de Belgrado ressalta que a cidade fica na confluência de dois rios internacionais – o Danúbio e o Sava – a partir dos quais se pode ir e vir para boa parte do continente. Páginas adiante, fotos e texto relatavam o festival de Svibor, no qual sérvios reconstituem batalhas medievais, vestidos a caráter (lembram das pessoas que vi treinando luta de espadas no parque? pois é). O evento tem o apoio e patrocínio da Igreja Ortodoxa, porque relembra a importância dos povos eslavos na defesa do cristianismo contra os invasores turcos muçulmanos. E isso foi durante quatrocentos anos, do século XV ao XIX. Os vienenses adoram falar de como resistiram ao cerco otomano de 1683, mas os turcos só demoraram a chegar lá porque ficaram literalmente séculos embarreirados pelos guerreiros sérvios.
O único outro período da História tão popular quanto o revivalismo medieval e’ a Iugoslávia, especificamente os anos dourados sob Tito (1945-1980). O contraste com os outros paises ex-socialistas do Leste Europeu e’ impressionante: enquanto a República Tcheca ignora ou se aproveita disso para atrair turistas e a Romênia sente vergonha do Ceauşescu, a Sérvia se orgulha e sente saudade do Marechal. Incluindo os nao comunistas. Srba resume o sentimento muito bem: “Naquela época, éramos um grande país, um dos maiores da Europa. Nosso passaporte vermelho era respeitado e com ele podíamos viajar para qualquer lugar do mundo. O Terceiro Mundo tinha a Iugoslávia como exemplo e liderança. Nosso tipo de socialismo era invejado. Tivemos muito mais sorte que os russos.”
A nostalgia é refletida nos inúmeros livros lançados recentemente sobre ele, sobre o pais que deixou de existir, incluindo o recente “A Cozinha de Tito” (um livro das receitas preferidas do Marechal e outros pratos feitos com ingredientes das seis repúblicas), alem das camisetas, pôsteres, pins, medalhas e outros tipos de memorabilia. Mas, enquanto em Praga estes itens eram vendidos especificamente para turistas, aqui em Belgrado eles são consumidos pela própria população. Conta-se também o furor pós-plebiscito, que salpicou bandeiras sérvias (restauradas da época da monarquia) em todos os prédios, casas e mesas de escritorio. Para os sérvios, não é só Montenegro que é o país mais novo do mundo: eles também, finalmente, voltaram a ser simplesmente Sérvia.
Desejei ser contido por uma camisa de forca financeira: dois dias a mais em Belgrado significavam dois dias de compra de toda esta quinquilharia titoísta. Vocês sabem, sou um membro de carteirinha do Partido Consumista.
E o que não se pode deixar de comprar na Servia e’ comida. A cultura daqui tem quitutes deliciosos, a maioria `a base de carne (sinto muito pelos vegetarianos, como o David), e o mais fácil deles é a palatchinca (ou palačinka), uma massa de panqueca recheada e dobrada em cone, para ser comida com a mão. Embora um francês que conheci mais tarde tenha jurado que a iguaria sérvia não passa de um simples crepe, eu ainda não tinha visto nada parecido. De tanto observar (e comer), acho que aprendi a fazer. Faço aqui a promessa de, quando voltar, chamar os amigos pra um lanche e preparar palatchinques salgados e doces para todo mundo.
Depois de forrar o estomago, telefonei para Srba, que ficou espantado por eu ter conseguido “perder” o avião – sem que fosse culpa minha! – e garantir minha estadia adicional na cidade. Como estava desesperado para me livrar dos 49 quilos da minha tripla bagagem (27 da mala, 15 da mochila e 7 da mochilinha), acabei aceitando a sugestão de ir para um ho(s)tel mais perto, cuja maior vantagem foi ter conhecido a única brasileira com quem cruzei na Servia – uma estudante de medicina de Londrina, PR. Cedo no dia seguinte, voltaria para o albergue onde já estava – um pouco mais longe, mas muito mais aconchegante.
No meio do caminho, passei num guichê da DHL e consultei preço de remessa para o Brasil. Tarifa mínima de 100 euros por 1 kg. Um quilo. E a minha tralha pesa 49. No way.
Foi nessa noite que conheci o Zemun, a segunda área antiga de Belgrado. O interessante da capital servia é que, por estar na antiga fronteira entre Império Otomano e Áustria-Hungria, ela tem duas cidades antigas: a parte central, dominada pelos turcos durante quatro séculos, e o núcleo construído pelos austríacos para vigiar o limite. É este setor que se chama Zemun. Nas ruas, cada detalhe é incrível. Um cheiro doce exala por todo o bairro. Ate’ a tampa do bueiro e’ bonita, de um baixo-relevo em latão que brilha dourado sob a luz de mercúrio dos postes, com os dizeres “Kanalizacija – Grad Beograd“. Dominado por uma alta torre de onde se pode ver o Kalemegdan (ou seja, turcos e austríacos se patrulhavam mutuamente), o Zemun é uma vizinhança de ladeiras e construções do século XVIII cheia de bares, cafés e cantinas típicas, aqui chamados “kafanas”, com vista para o Danúbio. Esforçando-me ao máximo para evitar comparações, o lugar lembra uma mistura de Ouro Preto com Santa Tereza. Detalhe interessante é que, ate’ recentemente, todos esses estabelecimentos eram estatais, incluindo o restaurante onde tomei uma coca-cola – mas isso não é fácil de perceber. Funcionam igualzinho a qualquer outro.
Subindo numa destas kafanas, fiquei hipnotizado com a vista: o lado oposto ao que tinha visto antes, com a “outra” Belgrado antiga brilhando ao fundo, as muralhas do Kalemegdan mais uma vez douradas e uma lua cheia gigantesca no céu, do tamanho daqueles sois africanos. Voltei `a realidade e pensei que aquele e’ o lugar ideal pra fazer um pedido de casamento.
Entre as duas “old towns” cresceu a Nova Belgrado, uma área de urbanização no estilo Barra ou Brasília cuja maior atração são os blocos de apartamentos construídos por Tito. Atualmente abrigam a classe média da cidade e percebe-se que a região, como todas do tipo, já esta’ sendo alvo de especulação imobiliária. Marriots, Sheratons, Best Westerns e Intercontinentais estão subindo em locais onde antes havia sedes de empresas publicas pertencentes ao povo iugoslavo. Globalização é foda.
(Imaginem sentinelas austríacos tendo a mesma visão no século XVIII, exceto que vez por outra eram atingidos por tiros de artilharia turca. Não é à toa que aquela ilha fluvial totalmente preservada, que mencionei antes, tem o nome de Veliko Ratno Ostrvo, ou Grande Ilha da Guerra).
No caminho de volta, ao longo de uma linha de barcos-boates (splavs ou “bares flutuantes”) ancorados na beira do Danúbio e batizados com nomes hispânicos (Akapulko, Marinero e Avana sem H), Srba e eu viemos conversando sobre a relação entre o Leste Europeu e a América Latina. Comentamos que o povo de uma região não sabe praticamente nada sobre a outra. E que, no entanto, são dois lugares do mundo com realidades semelhantes, ou espelhadas: duas partes do mundo que estão tentando reconstruir suas democracias, enfrentando corrupção e pobreza, depois de passarem por ditaduras de variados níveis de crueldade – apenas se inverte o espectro ideológico de cada lado. Disse a ele que, para muitos aqui, o lado de trás da antiga Cortina de Ferro não passa de um lugar onde as pessoas falam línguas incompreensíveis, são loiras, robustas e rudes e gostam de guerrear de tempos em tempos (não preciso mencionar que não foi “nesse” Leste que fui, porque não existe). Por outro lado, meu fixer (que é analista de sistemas e um fã de Ian Brown) garantiu que a ignorância é recíproca, e que os eslavos vêem a América Latina como um lugar exótico, LONGE (reiterado varias vezes) e que não se sabe nada daí à exceção notável de Cuba. A experiência comum da vida socialista criou um interesse e solidariedade para com a ilha. Neste ponto ele começa a me perguntar se sei algo de lá, e começo a contar o que escutei de Larissa/Flor/Ricardo que estiveram em Cuba este ano, fazendo a triangulação. Globalização é foda.
Exausto, e com quatro calos no pe’, mas com o coração extasiado por uma visão do paraíso (perdido) que é Belgrado, voltei para o albergue. O dia seguinte seria ainda mais movimentado.