Kosovo, a terra onde se baba ovo

Enquanto a coisa está bombando em Gaza (perdão), aqui no Kosovo está tudo bem calmo. As primeiras páginas dos jornais ainda falam do ataque de sexta-feira em Mitrovica, o que é um sinal de que há poucas notícias pra publicar.

Eram pouco mais de 14h quando chegamos em Priština (que os albaneses chamam de Prishtinë, com tônica no TI). Viemos de van – igualzinho às que se pega pra ir da Central do Brasil até a Baixada Fluminense. A estrada de Mitrovica até aqui é tranqüila, plana, quase toda reta, de asfalto novo. Aliás, tudo no caminho é novo. As construções, sinalizações, casas e comércios têm aspecto de recém-inauguradas ou com menos de 10 anos. Claro, tudo aqui foi feito com dinheiro dos EUA e da UE, que passou a jorrar desde o início da ocupação, em 1999.

A gratidão dos albano-kosovares a esse investimento, que de fato melhorou a infraestrutura e gerou empregos, está bem exposta no número de bandeiras estadunidenses e européias que pontilham a estrada. Não só nas instalações militares (que incluem também de Portugal e dos Emirados Árabes Unidos) ou nas obras pagas com dinheiro estrangeiro (a reforma do parque deste bairro foi feita pela Itália), mas em lojas e estabelecimentos locais. Eles transformaram o Dia de Ação de Graças ianque em feriado nacional, chamado Thanksgiviong to US day. Existe ainda uma Avenida Bill Clinton, onde se exibe um gigantesco painel com o desenho do homem, bem no estilo Saddam. O que parece mais ultrajante para a Sérvia, porém, é que entre eles é mais fácil encontrar a bandeira da Albânia (vermelha com a águia “do Cavalera“) do que a bandeira da autoproclamada República do Kosovo (azul com o mapinha e estrelas em amarelo).

Na prática, isso sinaliza que o esforço do Ocidente tem sido não tanto em dar independência ao Kosovo, e sim em entregá-lo de bandeja à Albânia, um fiel aliado de Washington desde a ressaca dos anos 90 (Enver Hoxha, pirâmides, anarquia etc.). Por enquanto, não existe uma identidade kosovar distinta daquela dos albaneses que vivem na República da Albânia. A questão das bandeiras não é de identificação com a nação albanesa, e sim com o Estado albanês. Os jornais de Tirana circulam aqui. As livrarias têm livros de História da Albânia, não do Kosovo nem da Iugoslávia. Da mesma forma, não foi criada uma moeda própria, e o que circula livremente é o euro. Na praça principal, há uma enorme estátua de Skanderbeg (Jorge Castrioto), o herói da Albânia medieval – e, na verdade, é uma cópia do mesmo monumento em Tirana. E a maior rua de pedestres se chama Rua Nëna Terezë, em homenagem à Madre Teresa de Calcutá (que nasceu na Albânia mas era de etnia aromena – parentes próximos dos romenos e também latinos).

Até existe um projeto trocar a identidade do Kosovo por “Dardânia“, um suposto nome que a região teria tido no período pré-romano. Isso seria coerente, até porque “Kosovo” é uma palavra de origem eslava medieval. Em sérvio, Kosovo Polje significa “Campo dos Sabiás” (sabiá é “kos“). Foi aqui que os cristãos reunidos sob o Príncipe Lázaro, então monarca sérvio, perderam a batalha decisiva para os turcos em 1389. E foi aí que tudo começou.

Na mesma rua da Madre Tereza fica o escritório da OSCE (Organização para Segurança e Cooperação na Europa, ou Agência Européia do Imperialismo Econômico-Militar). É um prédio gigantesco, ofensivo de tão suntuoso. Mas o segurança foi muito simpático conosco quando disse que não podíamos tirar fotos.

Tirando ele, mais ninguém fala inglês aqui.

E, na verdade, albanês não é uma língua tão bizarra. Por exemplo: ninguém entendeu quando eu perguntei em inglês onde havia uma “bookstore“. Se eu soubesse que a palavra em albanês é “libraria“, teria perguntado em português.

Comi aqui um delicioso doce feito de figo seco, tâmaras e waffle. Chama-se “fiqa” e se pronuncia “fítscha”.

Estamos hospedados em um lugar que é parte-albergue, parte-pensão, comandado por um professor universitário aposentado. Fica em um bairro chamado Velania, muito perto da antiga residência de Ibrahim Rugova, o equivalente kosovar do Slobodan Milošević. É barato: 9 euros por noite, por pessoa, em um quarto com duas camas e TV. O chato é que é difícil chegar, pois o fato de haver meio metro de neve nas calçadas torna quase impossível andar a pé.

Comprei uma bota. Da Caterpillar. Falsificada.

[DISCLAIMER: Este post foi todo escrito offline, depois copiado-e-colado num computador com acesso discado. Por isso está tão longo. Volto a escrever quando tiver mais tempo. Qualquer coisa, meu cel aqui é +381 66 132659.]

Problema bilateral, solução unilateral

Agora há pouco, por volta das 11h15, um helicóptero da KFOR estava sobrevoando a parte sérvia de Mitrovica. Um helicóptero com metralhadora na ponta e um soldado de arma em riste pendurado na porta. Dava rasantes, parava, subia, voava em círculos e baixava de novo. Chegava até a ponte e voltava. Em terra, carros da polícia kosovar (com agentes albaneses) passavam em alta velocidade.

Nada que a gente no Rio já não tenha visto com o BOPE.

Clima de tensão? Só se fosse para eles. Nas ruas, as pessoas iam e vinham com suas vidas normalmente. Fazem compras na quitanda, cortam lenha, cozinham o almoço. Eu tinha acabado de subir até a igreja no alto da colina e vi os fiéis voltando da missa. Calmamente. A igreja, que é grande, tinha um suave cheiro de incenso por dentro. A decoração repete em diversos objetos o motivo a águia de duas cabeças (símbolo bizantino, por representar o império que olha ao mesmo tempo para ocidente e oriente, herdado por vários países ortodoxos, inclusive a Rússia e a Sérvia).

Em Mitrovica, essa águia anda degolada. Afinal, o helicóptero e os carros da OTAN só patrulham o lado sérvio. Esquecem de olhar para o oriente – e em geral é de lá que vem o problema.